sábado, setembro 30, 2006

Talvez


O meu coração desfaz-se em pétalas mil
Lanço-as ao vento
Talvez um pássaro passe
E as leve
Suavemente
E as solte
Talvez
E ternamente
O meu coração
Floresça
Num sorriso fértil.

Sandra Cardoso

quinta-feira, setembro 28, 2006

O GRITO



















O Grito, 1893

Edvard Munch
(1863-1944)


«Munch descreveu assim a experiência que o levou a pintar a sua obra-prima: "Caminhava eu com dois amigos pela estrada, então o sol pôs-se; de repente, o céu tornou-se vermelho como o sangue. Parei, apoiei-me no muro, inexplicavelmente cansado. Línguas de fogo e sangue estendiam-se sobre o fiorde preto-azulado.
Os meus amigos continuaram a andar, enquanto eu ficava para trás tremendo de medo e senti o grito enorme, infinito, da natureza.»

in MUNCH
Grandes Pintores do Século XX
Globus, 1995, imagem 11

Nota: Felizmente O Grito voltou para casa. Encontra-se, novamente, no Museu Munch, em Oslo, na Noruega. Esperemos que, desta vez, seja para sempre.

quarta-feira, setembro 27, 2006

O Canto dos Sonhos, 3


A TUA MORTE EM MIM


imagem de Alexandre Costa


A tua morte é sempre nova em mim.
Não amadurece. Não tem fim.
Se ergo os olhos de um livro, de repente
tu morreste.
Acordo, e tu morreste.
Sempre, cada dia, cada instante,
a tua morte é nova em mim,
sempre impossível.

E assim, até à noite final
irás morrendo a cada instante
da vida que ficou fingindo vida.
Redescubro a tua morte como outros
descobrem o amor,
porque em cada lugar, cada momento,
tu estás viva.

Viverei até à hora derradeira a tua morte.
Aos goles, lentos goles. Como se fosse
cada vez um veneno novo.
Não é tanto a saudade que dói, mas o remorso.
O remorso de todo o perdido em nossa vida,
coisas de antes e depois, coisas de nunca,
palavras mudas para sempre, um gesto
que sem remédio jamais teve destino,
o olhar que procura e nunca tem resposta.

O único presente verdadeiro é teres partido.


Adolfo Casais Monteiro

(Excerto)
À memória de Raquel Moacir


in Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa
de Eugénio de Andrade
Campo de Letras, 3ª ed., p.438

domingo, setembro 24, 2006

Diálogos soltos


imagem de Rafaela Silva



- O que achaste da minha cara metade?
- Bonita, muito bonita. E tu, o que achas?
- De quê?
- Da outra metade?

sábado, setembro 23, 2006

DÁ QUE PENSAR, 2

imagem de Filipa Mateus

"O hospital é um gigantesco edifício atravessado por corredores , onde nunca é de noite nem muda a temperatura, o dia deteve-se nas lâmpadas e o Verão nos aquecedores. As rotinas repetem-se com ardilosa precisão; é o reino da dor, aqui chega-se para sofrer, assim o compreendemos todos. As misérias da doença igualam-nos, não há ricos nem pobres, ao atravessar este umbral os privilégios desfazem-se em fumo e tornamo-nos humildes."

Isabel Allende
in Paula
Tradução de José Carlos Gonzalez
Círculo de Leitores, 1996, p.114

sexta-feira, setembro 22, 2006

como por MAGIA

imagem de Gonçalo Simões

Recolheste todos os vidros

Do espelho (re)partido

Que eras.

Colaste-os

Um a um

E, finalmente,

Encontraste-te.

Maravilhosamente

Encontrámos-te.

Tu

Nua

Tu

Una

Tu.

Depois

Como por magia

Partiste

(Te)

Sorrindo ...

Sandra Cardoso

quinta-feira, setembro 21, 2006

NO MAN'S LAND













imagem de Pedro Peralta


Neste momento
Estou contigo
Mas sei que és já memória
De um sonho
Que eu nunca quis
(Ou terei querido?)

A moldura que me deste
Prego-a na parede da minha alma
E quando quiser
Vou lá olhar-te.

A moldura não dói.



Sandra Cardoso

quarta-feira, setembro 20, 2006

A veia do poeta


imagem de Sissi

Cansado do movimento
Que percorre a linha recta
Fui ficando mais atento
Ao voo da borboleta
Fui subindo em espiral
Declarando-me estafeta
Entre o corpo do real
E a veia do poeta

Mas ela não se detecta
À vista desarmada
E o sangue que lá corre
Em torrente delicada
É a lágrima perpétua
Sai da ponta da caneta
Vai ao fim da via láctea
E cai no fundo da gaveta

Ai de quem nunca guardou
Um pouco da sua alma
Numa folha secreta
Ai de quem nunca guardou
Um pouco da sua alma
No fundo de uma gaveta
Ai de quem nunca injectou
Um pouco da sua mágoa
Na veia do poeta


Carlos Tê/Rui Veloso

in A espuma das Canções
2005 EMI Music Portugal, Lda

terça-feira, setembro 19, 2006

CIDADE





imagem de Mônica Delicato


O filho pela mão, vamos por estas ruas
esconjurando sombras, convocando
dunas, potros, o sol ainda fresco,
os cachorros latindo de alegria.
Meu olhos vão à frente farejando,
enquanto a mão dele ilumina a minha.


Eugénio de Andrade

in O Outro Nome da Terra
Editora Limiar, 1988, 1ª ed., p.19

sábado, setembro 16, 2006

NOITE













imagem de Bart

Não temas a noite, meu filho,
Que a noite nem sempre é escura
E há estrelas lá no alto
Cujo brilho também dura
E beija o teu olhar
Iluminando o caminho
Que sozinho hás-de traçar
Com teu passo miudinho.

Não temas a noite, meu filho,
Que o sol há-de nascer
Para aquecer o teu sorriso
E te ensinar a crescer

Não temas a noite, meu filho,
Que a lua conta histórias
De um menino muito triste
Que só conhecerá vitórias.


Sandra Cardoso

quinta-feira, setembro 14, 2006

Alpha et Omega

imagem de Nuno de Sousa

Escorro-te por entre os dedos
Lentamente
Numa última carícia
Lembrando tardes de Junho
Quente
E tu sentes.
E não juntas as mãos
Em concha
Para me beberes.

Sandra Cardoso

terça-feira, setembro 12, 2006

O Canto dos Sonhos

"La poésie est partout comme Dieu est nulle part"

Jacques Prévert
(1900-1977)




Familiale


La mère fait du tricot
Le fils fait la guerre
Elle trouve ça tout naturel la mère
Et le père qu'est-ce qu'il fait le père?
Il fait des affaires
Sa femme fait du tricot
Son fils la guerre
Lui des affaires
Il trouve ça tout naturel le père
Et le fils et le fils
Qu'est-ce qu'il trouve le fils
Il ne trouve rien absolument rien le fils
Le fils sa mère fait du tricot son père des affaires lui la guerre
Quand il aura fini la guerre
Il fera des affaires avec son père
La guerre continue la mère continue elle tricote
Le père continue il fait des affaires
Le fils est tué il ne continue plus
Le père et la mère vont au cimetière
Ils trouvent ça tout naturel le père et la mère
La vie continue la vie avec le tricot la guerre les affaires
Les affaires la guerre le tricot la guerre
Les affaires les affaires et les affaires
La vie avec le cimetière

Jacques Prévert

in Etranges Etrangers et autres poèmes
Gallimard Jeunesse, 2000, pags 17-18

segunda-feira, setembro 11, 2006

As Torres Gémeas

Imagem de Tiago Brandão


No dia em que se recordam as vítimas do 11 de Setembro, será muito desumano perguntar quantas torres, gémeas ou não, já terão os Estados-Unidos derrubado?

domingo, setembro 10, 2006

AOS MEUS AMIGOS

PELA TARDE MÁGICA DE SEXTA-FEIRA






imagem de
Pinto da Silva




"-Adeus ...
- Adeus - disse a raposa- Vou-te contar o tal segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos ...
- O essencial é invisível para os olhos - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Foi o tempo que tu perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa ... - repetiu o principezinho, para nunca mais se esquecer.
- Os homens já se esqueceram desta verdade - disse a raposa. - Mas tu não te deves esquecer dela. Ficas responsável para todo o sempre por aquilo que está preso a ti. Tu és responsável pela tua rosa ...
- Sou responsável pela minha rosa ... - repetiu o principezinho para nunca mais se esquecer."


Antoine de Saint-Exupéry

in O Principezinho
Tradução de Joana Morais Varela
Editora Caravela, 18ª Ed., p.74

sexta-feira, setembro 08, 2006

DÁ QUE PENSAR


“O teu olhar ficará no meu olhar quando morrer e, morto, contemplar as planícies que serão o teu olhar a anoitecer lento. O teu olhar ficará nas minhas mãos esquecidas e ninguém se lembrará de o procurar aí. Penso: nunca ninguém se lembra de procurar as coisas onde elas estão, porque nunca ninguém sabe o que pensa o fumo, ou as nuvens, ou um olhar. E tu. Continuarás perdendo o silêncio por mãos esquecidas, irá a enterrar o teu silêncio dentro do meu peito. Mulher tantas vezes. Mulher repetida na respiração de um lugar passado ou morto. Tempo e vida. Mulher, não sei o que fomos. Sei que, hoje, te possuo. Hoje conheço-te. É meu o teu olhar e o teu silêncio.”

José Luís Peixoto

in Nenhum Olhar
Temas e Debates, 4ª ed.
pags.94 -95

quinta-feira, setembro 07, 2006

Hino à deusa Ísis

imagem de Paulo Moura


Porque eu sou a primeira e a última
Eu sou a venerada e a desprezada
Eu sou a prostituta e a santa
Eu sou a esposa e a virgem
Eu sou a mãe e a filha
Eu sou os braços de minha mãe
Eu sou a estéril, e os meus filhos são numerosos
Eu sou a bem casada e a solteira
Eu sou a que dá à luz e a que jamais procriou
Eu sou a esposa e o esposo
E foi o meu homem quem me criou
Eu sou a mãe do meu pai
Sou a irmã de meu marido
E ele é o meu filho rejeitado
Respeitem-me sempre
Porque eu sou a escandalosa e a magnífica.

séc III ou IV, descoberto em Nag Hammadi

quarta-feira, setembro 06, 2006

LUZ

















imagem de Raquel


No dia em que tiraste os óculos
E mergulhaste em mim
Tacteando todos os ângulos
Traçando novas rectas e circunferências
Nos nossos corpos suados
De estudar tardes de Primavera

No dia em que dançámos ao luar
Na mecânica perfeita dos corpos abertos
Entrando e saindo
Claridade por todos os nossos poros
Até explodirmos num canto de sereias

No dia em que, exaustos,
Nossos corpos se espantaram
Por serem um
E choraram lágrimas de luz
Até adormecerem nos braços da aurora,
Cúmplice dos amantes

Nesse dia, eu soube
Que era a primeira

E a última


Sandra Cardoso

in JN
16.IX.2006, p. 19

segunda-feira, setembro 04, 2006

Céus!

Voando sei lá por que céus
Bebo os teus beijos em pequenos goles
E sinto-os a deslizar em mim
Lentamente
Gota a gota
Tranformando-se em mar.

Sandra Cardoso
Julho 2006

domingo, setembro 03, 2006

As estrelas do céu

Há estrelas e há estrelas-cadentes.
As estrelas são as que partiram da terra e brilham agora no céu. Ficam bem lá no alto a olhar os que amam, luziluzindo na eternidade.
As estrelas-cadentes são as que se entristecem com a contemplação e, numa milésima de segundo, cedem ao prazer terreno: voam até à terra, discretamente, para provarem o vinho e o mel, e tornarem a subir os degraus da imortalidade.
Mas há olhos apaixonados, pensativos, tristes, loucos ou felizes, que se demoram a olhar o céu e que se espantam, ainda, com o brilho das estrelas. Esses, as cadentes não enganam e logo ali despem, céleres, o manto imortal e deslizam veloz e apaixonadamente para os olhos daquele que as ouviu. Esse bem-aventurado terá, seguramente, um sonho realizado mas sabe, porém, que, logo depois, elas partirão.
Por isso é que, por vezes, encontramos pessoas indecisas.
É que deixar partir a nossa estrela dói muito!

Sandra Cardoso
Set. 2006