Quanto vale uma hora de vida?
quantas vezes, olhando as estrelas, não as viste, porque não querias
há manhãs de chuva
que molham a alma
apenas pelo lado de fora
há tardes de sol
que queimam o corpo
realidade adentro
há noites de luar
que riscam a vermelho
o peito desiludido dorido enxuto
de tanto esperar pelo dia seguinte
tu tu banhas as pétalas
do meu sonho revolto envolto
em círculos ténues
de tempestades perenes
de verdadeiro estio
e estás sempre pronta a irrigar
de pranto de alegria de esperança
o meu plantio isto é
as minhas terras de cultivo
Manuel Fontão
Chove.
A grua indica o caminho.
A gaivota pousa na grua.
Olha o mar.
Chove.
Em que pensará a gaivota pousada na grua
Alta
Olha o mar
Olha a minha sala
Olha-me sentada no sofá ou deitada
O sofá
A gaivota à chuva olha o mar
Eu sentada ou deitada ouço o mar
E não chove
No sofá
Não
Chove
Na grua alta que mostra o mar à gaivota
E a mim
O que mostra o sofá?
A gaivota parte
E a mim
O que mostra o sofá?
Fica a grua
Fica o sofá
Fico.
O que mostra o sofá?
Chove.
Uma vez, aos sete anos,
partiu à pedrada a lanterna da porta da igreja
Dez anos depois, conduzindo um carro,
não parou num cruzamento de rua
onde havia um sinal de stop.
Dois anos depois, teve uma briga
num bar, e partiu a cabeça a um amigo
com uma garrafa de cerveja.
Quando se recusou a combater no Viet-Nam,
o seu cadastro provara como desde a infância,
sempre manifestara sentimentos
nitidamente de traidor à pátria.
12 de Agosto de 1969(?)
Jorge de Sena
in Poesia de Jorge de Sena
Ed. Comunicação, 1985, p.179