segunda-feira, outubro 30, 2006

Canto dos sonhos, 6

TEATRO DA BONECA














Pinto da Silva

A menina tinha os cabelos louros.
A boneca também.
A menina tinha os olhos castanhos.
Os da boneca eram azuis.
A menina gostava loucamente da boneca.
A boneca ninguém sabe se gostava da menina.

Mas a menina morreu.
A boneca ficou.
Agora também já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.

E a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A boneca abre as tampas de todas as malas.
A boneca arromba as portas de todos os armários.
A boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A boneca está em toda a parte.
A boneca enche a casa toda.

É preciso esconder a boneca.
É preciso que a boneca desapareça para sempre.
É preciso matar, é preciso enterrar a boneca.

A boneca.

A boneca.

CARLOS QUEIROS

in Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa
Campo das Letras, 3ª ed., p.435

domingo, outubro 29, 2006

...

Raquel

Porque chora
Minha alma
Tão sentida,

Quando rasga
a luz
do meu olhar?

Porque chora
Minha alma
Tão escura,

Incapaz
de ver
o que vai mal?

Porque chora
Minha alma
assim cinzenta,

Pensando
em sol, em luz
em Mar?

Porque chora
minha alma
assim cinzenta,

Esperando
um dia
T'alcançar?

Um dia, sim
hei-de encontrar
a paz, a luz,
a vida, o sol
e o mar ...

Fátima Vilaça

E agora minha amiga, a letra de uma canção que poderá em parte responder a algumas das tuas inquietações ...

Depois Melhora
(Luiz Tatit)

Sempre que alguém daqui vai embora
Dói bastante, mas depois melhora e com o tempo
Vira um sentimento que nem sempre aflora
Mas que fica na memória, depois vira um sofrimento
Que corrói tudo por dentro, que penetra no organismo
Que devora, mas depois também melhora

Sempre que alguém daqui vai embora
Dói bastante, mas depois melhora e com o tempo
Torna-se um tormento que castiga, deteriora
Feito ave predatória, depois vira um instrumento
De martírio duro e lento, uma queda num abismo
Que apavora, mas depois também melhora

E vira então uma força inexplicável
Que deixa todo o mundo mais amável
Um pouco é consequência da saudade
Um pouco é que voltou a felicidade
Um pouco é que também já era hora
Um pouco é pra ninguém mais ir embora

Vira uma esperança, cresce de um jeito
Que a gente até balança, enfim ...
Às vezes dói bastante, mas melhora
Enfim, é só felicidade aqui, agora
É bom, é bom não falar muito que piora
Enfim, é só felicidade

Ney Matogrosso

in Olhos de Farol

PolyGram, 1998

sábado, outubro 28, 2006

FRAGMENTOS

Hugo


Hoje, é um dia como tantos outros de chuva...mas, hoje, insistes em permanecer em mim. Tens vindo a fazê-lo frequentemente... por breves momentos, em imagens que passam. Hoje, porém, sentas-te e pedes a tua cerveja, sentas-te e acendes o teu cigarro, sentas-te e lês o teu jornal (era o notícias, não era? - Imagino os teus comentários ao que se vai passando por cá!). E quando terminas, descansas a face delicadamente na tua mão, a direita, a do cigarro, e olhas lá para fora. E nesse gesto eternizas uma hora, uma manhã, um dia, uma vida. Pensava eu que olhavas o trânsito, que te distraías com quem passava, mas hoje sei que olhavas o céu e com teus olhos de ave partias para outros mundos.

Tens razão...não te conheci verdadeiramente...mas ninguém te conheceu. Tu não querias. Se te falávamos sorrias e encantavas-nos com palavras sábias sobre o que se passava por cá. Hoje, sei que não era sobre isso que querias conversar. Hoje sei, mas eu tinha vinte anos e aos vinte não se sabe nada...
Como podia adivinhar que quando chegavas a casa e ligavas a televisão no canal dois,( se tu visses a programação agora!), para ouvir a música clássica que passava enquanto o canal não abria...(e eu não compreendia porque havias de ligar a televisão para ouvir música), como havia de adivinhar, nesse gesto, uma máscara social...querendo parecer da terra, navegavas nos sons e saías livre pela janela aberta, misturando-te no vento e com ele viajando por sonhos só teus... A tarde inteira fumavas, a tua companhia, dizias ... e eu não compreendia a solidão , a tua. Ou não queria. Ou não podia ...eu tinha 20 anos ... Só agora sei que mesmo sem escrever era em verso que pensavas. Só agora! E a cerveja já acabou.

Sandra Cardoso

terça-feira, outubro 24, 2006

Dá que pensar, 5

Pedro Moreira


"- Amigo velho, não há que fazer. Como pudeste imaginar que a Andorinha viesse te aceitar como marido? Nunca houve caso... Mesmo se ela te amasse -e quem te afirma que ela te ame?- jamais poderia casar contigo. Desde que o mundo é mundo, às andorinhas é proibido casar com gatos. Essa proibição é mais do que uma lei e está plantada com fundas raízes no coração das andorinhas. Dizes que ela gosta de ti, que se dependesse da sua vontade ... Pode ser, acredito mesmo que sim. Mais forte que ela, porém, é a lei das andorinhas. Porque está dentro dela desde o seu mais velho avô, desde a primeira andorinha. E para romper uma lei, é preciso uma revolução ...
Completou balançando a cabeça:
- Aliás, era até bom que acontecesse uma revoluçãozinha ... Estamos necessitando."


Jorge Amado

in O Gato Malhado e a Andorinha Sinhã
uma história de amor
Dom Quixote,1ª ed. , p.98

segunda-feira, outubro 23, 2006

Diálogos soltos, 3

vmdcc

- Vê, Marília, o que encontrei.

- Há quanto tempo!

- Há muito tempo!...

- O que o tempo faz!...

- Vamos pintá-las?

- Para quê?!!

Sandra Cardoso

sábado, outubro 21, 2006

Café Concerto
















Maria de Fátima Silveira




Quando te conheci
Eras o concerto
Trompete, Jazz improvisado
Moravas na pauta de música
E a tua janela ficava na segunda linha
Perto da Clave de Sol

O cartaz indicava o café concerto
Da rua do sonho a seguir à travessa da realidade
Não houve respiração quando chegaste
No vestido Semibreve de cristal
E a pouca luz que define a tua silhueta
Causava alegria
A sala cheia, o ambiente tornado íntimo
Também eu estava

O microfone ligado
Foi o passaporte de magia
Cada pedaço teu, feito de som
O ar inundado de emoções
As palavras de veludo
Percorrem a pele arrepiada
E entram dentro de mim
Os teus lábios não escondem nada
Piano de cauda, aberto
Imagino os teus dedos compridos, delicados
Que quase me tocam devagar…

Tanto viver

O teu concerto nunca terminou

Quando te conheci
Corri depressa para agarrar essa noite
Dum tempo que não era meu
Não importa
Porque hoje, ainda recordo a tua voz doce
Como se cantasses só p´ra mim




Celso Silva
2006

quarta-feira, outubro 18, 2006

CONDICIONAIS


Se
Se as
Se as frágeis
Se as frágeis pequenas
Se as frágeis pequenas leves
Se as frágeis pequenas leves inocentes
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água dão
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água dão as
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água dão as mãos
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água dão as mãos para
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água dão as mãos para formar
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água dão as mãos para formar o
Se as frágeis pequenas leves inocentes gotículas de água dão as mãos para formar o nevoeiro


por

que

razão

não

as

dão


os



professores?


Sandra Cardoso

terça-feira, outubro 17, 2006

O Canto dos Sonhos, 5



O PORTUGAL FUTURO





















imagem de Graça



O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro


Ruy Belo

in Todos os Poemas II
Assírio & Alvim, 2ª ed.,p.147

domingo, outubro 15, 2006

DÁ QUE PENSAR, 4

autor desconhecido


" (...) Neste momento, Portugal é um mistério. É impossível a gente calcular o que virá a ser dele! É uma Pátria que a noite envolve, entregue aos morcegos e às aves agoureiras. Aqui, não se vê um palmo adiante do nariz; é tudo confusão e sombra. (...)"

Teixeira de Pascoaes
Fevereiro de 1908

in Cartas de Autores Portugueses
Correios e Telecomunicações de Portugal,
1987, p.68

sexta-feira, outubro 13, 2006

Diálogos Soltos, 2

Vitor Reinecke

-Dá-me a mão.

-Para onde me levas?

-Fecha os olhos e confia em mim!

-Preciso de ver por onde vou.

-Se não fechares os olhos, nunca verás.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Tout le Temps, Tout le Temps

Alba Luna



J'ai appris de lui
Tout,
Les gestes et les cris
Tout,
Les baisers bouleversants
Et les mots difficiles
Réveil sans
Domicile
... Oser
Ce qu'il ose

J'ai appris pour lui
La
Souffrance et l'envie
La
Jalousie comme une corde
Ce désordre des sens
L' indécence
Et le coeur
A tordre
Toutes ces choses

Oui
Tout le temps, tout le temps
Oui
Tout le temps, pour lui
Je dépense mon temps
Je dépends ma vie ...

Même s'il m'aime par à-coups
Si je suis pour lui qu'une page
Un peu de son paysage,
Je pense à lui malgré tout
En silence
Sans violence
Aussi
Avec violence ...

Surtout pas me faire
Plaindre
Surtout pas me faire
Peindre
En petite fille bien gentille
Je suis tombée toute seule
Toute seule dans
Sa petite gueule
De loup
Et c'est tout


ELSA

in Elsa L'essentiel 1986-1993
Les Editions Productions Georges Mary
EMI Music

domingo, outubro 08, 2006

A FLOR












imagem de Kiko

Não era essa, meu amor, a flor
Secreta há tantos dias protegida
Da claridade de um beijo de vida
Da escuridão de uma chama de dor

Não era essa, meu amor, a flor
Amada há tantos dias prometida
Na rima para uma canção proibida
Nos versos para um poema de amor

E se essa que hoje me colheste encanta
De aromas mil olhares de mais além
Sabe que a nossa flor de vida tanta

Cresce bela na terra de ninguém
Feliz à chuva e ao sol livre canta
Com letra de vento e música d'outrem

Sandra Cardoso
in JN, 4 Nov., p.48

sexta-feira, outubro 06, 2006

DÁ QUE PENSAR, 3


"-Tens muito que fazer?
-Não. Tenho muito que amar.
(Não entendo ser professor de outra maneira. E não me venham dizer que isto cansa e mata; morrer-se sempre se morre: e à minha maneira tem-se a consolação de não ser em vão que se morre de cansaço.)"


Sebastião da Gama

in Diário de Sebastião da Gama
Edições ÁTICA, Outubro 1996, p. 83

quinta-feira, outubro 05, 2006

DIA MUNDIAL DO PROFESSOR

Explicações

















imagem de Karina

Pois o meu aluno, comparando o meu trabalho com o de um operário da construção civil, disse:

- Os professores não fazem nada! Custa alguma coisa ser professor?Projectam uma imagem, os alunos falam da imagem, os alunos escrevem sobre a imagem e os professores ficam a olhar para nós. Ainda dizem que trabalham, os trolhas é que trabalham!

Fiquei a olhar para ele. Como explicar a um aluno de 12 anos que o meu trabalho, bem como o de muitas outras pessoas, é intelectual e não físico? Como explicar a um aluno de 12 anos que, para estar ali, serenamente, na frente dele e de mais 25 como ele, com estratégias e actividades diversificadas, precisava de cerca de duas horas para preparar a aula e que, muitas vezes, trabalhava pela noite dentro, sacrificando horas de descanso merecido? Como explicar a um aluno de 12 anos que, enquanto Professora de Língua Portuguesa, tenho como objectivo desenvolver a expressão escrita dele e dos seus colegas e é por isso que lhe peço, semanalmente, textos escritos, a ele e aos seus colegas e a mais quatro turmas como as dele? Como explicar a um aluno de 12 anos que passo grande parte do meu fim-de-semana a corrigir os trabalhos dele e de mais 125 como ele?

Como explicar isto a um aluno de 12 anos e à sociedade portuguesa?

Sandra Cardoso
in JN
05.X.2006, p.20

quarta-feira, outubro 04, 2006

Lunático



Não posso dar-te a lua, disseste-me.

Eu sorri.

Ainda não sabias que me tinhas dado

O SOL

Sandra Cardoso

1ª imagem:autor desconhecido

2ª imagem: Roberto de Bem

segunda-feira, outubro 02, 2006

O Canto dos Sonhos, 4

Que súplica imprecisa nos ruídos
presenças indizíveis no meu quarto
a soprar vendavais nos meus ouvidos
e a seguir-me com pálpebras paradas.

Quem vem assim colher o que deixou
um naufrágio perdido no meu sangue?
Como abelha a sugar a flor da alma
liberta. Mas exangue.

Natália Correia,1955

in O Sol nas Noites e o Luar nos Dias I
Círculo de Leitores, 1993, p.87