segunda-feira, outubro 30, 2006

Canto dos sonhos, 6

TEATRO DA BONECA














Pinto da Silva

A menina tinha os cabelos louros.
A boneca também.
A menina tinha os olhos castanhos.
Os da boneca eram azuis.
A menina gostava loucamente da boneca.
A boneca ninguém sabe se gostava da menina.

Mas a menina morreu.
A boneca ficou.
Agora também já ninguém sabe se a menina gosta da boneca.

E a boneca não cabe em nenhuma gaveta.
A boneca abre as tampas de todas as malas.
A boneca arromba as portas de todos os armários.
A boneca é maior que a presença de todas as coisas.
A boneca está em toda a parte.
A boneca enche a casa toda.

É preciso esconder a boneca.
É preciso que a boneca desapareça para sempre.
É preciso matar, é preciso enterrar a boneca.

A boneca.

A boneca.

CARLOS QUEIROS

in Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa
Campo das Letras, 3ª ed., p.435

4 comentários:

mfc disse...

Lei primeira - é proibido ás coisas o facto de se humanizarem!

Belzebu disse...

A boneca é tão só, uma simples boneca! Toda a importancia que lhe possamos atribuir é relativa!

As bonecas e os bonecos que convivem connosco devem ser disciplinados!


Saudações infernais!

Unknown disse...

As palavras têm o dom de nos fazer olhar para dentro de nós… estas trouxeram-me alguma tristeza…
Penso nas alturas nas quais perdemos algo ou alguém e no quanto tudo o que nos faz lembrar disso, como a boneca, “é maior do que a presença de todas as coisas”…

Não acho que seja preciso “matar” nem “enterrar”… talvez transformar o seu significado!

dinorah disse...

Concordo com a(o) whisper!
Vejo outro significado a este texto, talvez um pouco mais irónico do que literal.
Acho que quando morre alguém, a maioria das pessoas tem a tendência a não falar mais do assunto, a esquecer, (ou a fingir que não se lembra), a pedir desculpa a quem perdeu alguém por ter referido o nome do morto...
Enfim, a matar tudo o que resta dessa pessoa (a boneca) para que não traga mais tristeza, mais infelicidade do que a sua própria morte.

Acho que se deve brincar, pegar, falar da (ou com) a boneca enquanto é tempo disso e depois, um dia, poisá-la, devagarinho, ao nosso lado e apenas olhar para ela com carinho.

Porquê esquecer? Ou fingir que se esqueceu?...

Desculpa a invasão, mas este poema tocou-me!!
Beijinho