quinta-feira, março 08, 2007

DIA INTERNACIONAL DA MULHER

O PREÇO DE UM SONO TRANQUILO OU O HOMEM QUE MORREU DE AMOR



Bart

Muitas vezes, misturo-me na multidão, para não pensar. Ouço as vozes, observo todas as pessoas que passam por mim, olho as montras, os preços, espero pelo sinal verde, atravesso estradas, ouço o barulho dos automóveis e, enquanto me distraio com o ruído, não me ouço, esqueço-me, quase me anulo na multidão. Porque a minha voz, quando me deito no silêncio da noite, a minha voz quase não acreditando que é minha, a minha voz a sugerir aos meus pais que colocassem a minha avó num lar, a minha voz a pedir aos meus pais que colocassem a minha avó num lar, a minha voz a impor aos meus pais que colocassem a minha avó num lar, não me dá tréguas. E só consigo adormecer quando ouço que era para bem deles, que a vida deles era um inferno, acordar às quatro horas da manhã e ver que a minha avó tinha colocado todas as roupas que possuía no chão e tinha feito uma trouxa e queria encontrar a porta para se ir embora e que eles não conseguiam dormir e que tinha arrancado a fralda e eram mais dois lençóis e um edredon, mais dois porque já tinha sido assim a semana inteira e que, além disso, tinham de ouvir os insultos da minha avó e os gritos e as agressões e que, no dia seguinte, a minha mãe tinha de trabalhar e que não podiam deixar de olhar para ela um segundo, porque ela podia fugir como já fizera tantas vezes, podia saltar novamente o muro da nossa casa e magoar-se, porque era melhor para ela, para eles, para mim ... Só assim é que eu consigo adormecer, por algumas horas, sabendo que antecipei a morte da minha avó, para salvar a saúde mental dos meus pais, porque, por muito bons que sejam os lares, ninguém trata melhor a nossa mãe, a nossa avó, do que nós...

Felizmente, os meus pais tinham algum dinheiro para pagar a prestação de um lar....estiveram à espera de vaga nos outros, nos do Estado, mas não havia...não havia... nos do Estado não há vagas para os idosos, o que importa os idosos? E os meus pais conseguiram pagar para terem um pouco de paz, (se é paz ir visitar a nossa mãe a um lar...).

Agora, uma outra imagem me atormenta, o desespero daquele homem obrigado a cometer um crime no final da sua vida, uma vida honrada, porque só um homem da altos valores poderia ter tamanho acto de amor, o desespero de não ter tido resposta de uma sociedade que aponta a justiça social como um dos seus valores fundamentais, o desespero de quem grita e não é ouvido. E atormenta-me saber que há tantos homens e mulheres e crianças que estão a gritar neste momento e eu estou aqui, com a cabeça na almofada, sem conseguir fechar os olhos, porque ouço o desespero da solidão daquele homem, ouço o seu grito mudo e sinto os tiros que entram em mim como sirenes de revolta ...

Assusta-me saber que não adianta pedir, reclamar, participar em manifestações, em greves...assusta-me esta impotência a que o cidadão comum chegou ...assusta-me que a única solução daquele homem tenha sido aquela, porque, acreditem, visto daqui e agora, continuo a achar que nós não tínhamos solução para aquele homem. E por isso não durmo. Não consigo, porque penso no estado das coisas e no Estado. Será que à noite, apagadas as luzes do dia, quando pousa a cabeça na almofada, o Estado consegue fechar os olhos e dormir um sono tranquilo?

Sandra Cardoso

p.s. esta reflexão vem no seguimento da notícia de um idoso que matou a mulher, doente de Alzheimer, e que se suicidou em seguida.


8 comentários:

Alberto Oliveira disse...

... eu já tinha antecipado um texto destes. E não tenho o dom da adivinhação... mas não era difícil prever que quem tem a sensibilidade de editar os posts neste blog, um dia, viria aqui deixar palavras que não devem ficar caladas, nem podem fazer parte apenas das nossas insónias. Partilhar, não é tão somente, dividir as alegrias, porque a vida também (e cada vez mais) é feita de interrogações, incertezas e, lamentavelmente de intranquilidades. As intranquilidades sem resposta de todos nós.

Beijinho Sandra.

Anónimo disse...

Olá:

Devem existir mundos onde as pessoas só interessam na medida em que são rentáveis...

Quem melhor do que tu podia iniciar uma corrente contrária? Nunca te arrependas do teu amar não caber dentro de ti.

Bjinho

Páginas Soltas disse...

Não tenho vergonha de confessar...que chorei ao ler o teu texto!
Senti a tua dor...e o teu remorso como sendo o meu...

Mas acredita, minha querida... fizeste o que foi melhor para todos...
Não havia condições para manter a tua avó em casa... um desgaste permanente...
Alternativa... a medida que tomaram!
Não te mortifiques... ainda bem que tinham poder monetário para pagar um lar...e quem não tem?

Junto a minha revolta á tua!

PS: Vou resumir-te o que se passou em minha casa:
- A minha sogra pessoa extremamente doente e incapacitada de estar em casa sózinha...tivemos que a levar tb para um lar... um lar do Estado. Por irónico que pareça... não esteve de Graça... as três reformas que ela auferia...
e não eram baixas...o Lar ficava com 80%!
- Pergunto...e quem não recebe aquele valor monetário?

Faço a mesma pergunta que tu?
Dormirão tranquilos os senhores que governam esta Nação?

Um bom fim de semana.

Beijinhos da

Maria

Moinante disse...

Hoje está sol , um dia bonito por sinal ...É dia de vaguear ... Portanto , ando por aí , no desejo de conheçer coisas novas ...

Um bom domingo , e desculpa a invasão ...

Vladimir disse...

o dia da mulher é todos os dias, sem excepção, do ano....

dinorah disse...

Também as lagrimas chegaram aos meus olhos...

Não consigo sequer comentar. dsc

Unknown disse...

...
...
...

dizem que, ás vezes, diz mais do que as palavras.

poca disse...

pois.. eu acredito que o estado não tem consciencia, nem coração..

temo a velhice... a minha e a dos meus.. sei o que é isso de que falas.. e do "trabalho" que é tomar tal decisão e depois conseguir concretizá-la.. à conta disso vi a minha mãe envelhecer pela primeira vez.. acho que até aqui, ela tinha estado sempre igual..

ps: em relação à tua questão ao legível... este texto mostra qeu sabes muito bem o que é um blog.. é para estas dádivas.. parabéns!